A pecuária de corte brasileira é desenvolvida em todas as unidades da federação e engloba, aproximadamente, 225 milhões de hectares distribuídos em mais de 2,2 milhões de estabelecimentos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Brasil é o maior exportador mundial e detém o segundo maior rebanho comercial, atrás somente dos Estados Unidos.
É indiscutível, portanto, a importância do setor pecuário do ponto de vista social, cultural, político e geográfico no Brasil, com dois terços do seu rebanho localizado em zona intertropical (Ferraz, 2010). Em termos regionais, o Centro-Oeste brasileiro é a principal região produtora de bovinos, perfazendo 34,1% do efetivo nacional. Notadamente, o Mato Grosso do Sul é referência mundial, com aproximadamente 21 milhões de cabeças em 15,5 milhões de hectares de pastagens plantadas, 1 milhão de animais abatidos por ano e faturamento de US$ 335 milhões em exportações de carne in natura (ABIEC, 2016).
Nos últimos anos, entretanto, ocorreram inúmeras mudanças no cenário nacional e internacional da cadeia produtiva da carne bovina com questionamentos de práticas de produção que têm levado novos desafios à pecuária brasileira. A produção de alimentos requer hoje tecnificação e práticas sustentáveis de manejo, para viabilizar e incentivar a certificação de origem dos produtos comercializados.
Neste contexto, a adequação das instalações, o manejo apropriado a cada sistema de produção, o melhoramento genético das raças já domesticadas e de animais silvestres, bem como o aperfeiçoamento de produtos agrícolas, a sanidade, a nutrição e a alimentação dos animais, a produção de forragens e o gerenciamento do agronegócio como um todo são alguns dos campos fortemente beneficiados pela utilização de avançadas técnicas computacionais, fazendo uso de ferramentas baseadas em abordagens de Engenharia de Software, Robótica, Inteligência Artificial, Sistemas Embarcados, Aplicações Distribuídas, entre outras subáreas da Computação.
Para tratar problemas multidisciplinares como este, onde há a necessidade do uso de dispositivos de hardware e softwares como chave para incremento da competitividade na indústria da carne bovina, existe a área da Pecuária de Precisão Computacional (Cáceres et al., 2011). O objetivo principal desta área é o estudo de soluções computacionais para resolver problemas da pecuária. Os problemas incluem a gestão da propriedade, do uso da terra e do rebanho, simulação de crescimento do pasto, estudo da linhagem genética dos animais, classificação automática de carcaças, controle da qualidade da carne e do couro, logística, antecipação do diagnóstico de doenças, rastreabilidade, monitoramento do bem-estar, custos do sistema produtivo, etc. A Pecuária de precisão é, portanto, um conjunto de técnicas aplicadas à cadeia de produção onde a tecnologia da informação e comunicação é utilizada para ajudar a garantir produtividade, boas práticas de manejo, segurança alimentar e qualidade.
A Pecuária de Precisão tem, já há alguns anos, gerado pesquisas conjuntas entre a Faculdade de Computação (FACOM) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e a Embrapa Gado de Corte. Várias colaborações isoladas foram realizadas, com diversos resultados consolidados. A partir de 2013, um curso stricto sensu de Mestrado Profissional em Pecuária de Precisão solidificou e integrou essas colaborações, possibilitando resolver da melhor forma as demandas da cadeia produtiva da carne bovina, uma vez que os trabalhos são desenvolvidos por alunos sob orientação de professores da FACOM/UFMS, com co-orientação de pesquisadores da Embrapa, produzindo inovação e tecnologia na forma de produtos e processos.
Estas iniciativas estão intimamente relacionadas com a era da transformação digital dos nossos dias: a introdução de uma série de novas tecnologias disruptivas (big data, cloud computing, blockchain, computação cognitiva, IoT, etc), a mudança na forma do comportamento das pessoas em contato com essas tecnologias, o surgimento da interação com e entre coisas interconectadas (IoT), a valorização da “liberdade de informação”, o estabelecimento de parcerias e novos negócios por meio de novos ecossistemas em detrimento ao monopólio intelectual, capital e industrial e a criação de sistemas cognitivos e autônomos.
Para a Embrapa, e sua missão de viabilizar soluções para a sustentabilidade da agropecuária, esta nova era abre possibilidades ainda mais significativas. Os novos meios de comunicação possibilitados por redes cada vez mais velozes e presentes, tal como a internet rural implantada pelas operadoras das redes 4G e o recente satélite geoestacionário brasileiro (SGDC-1), possibilitam o alcance da TI nas mais remotas áreas do país. Esta infraestrutura de comunicação, somado à popularização dos dispositivos móveis, permite à Empresa e seus parceiros disponibilizarem publicamente sua imensa base de informação e serviços em um grau de capilaridade inédito. Associado ao uso intensivo de máquinas com sensores e habilidades cognitivas que permitem capturar, armazenar, processar e transmitir dados em áreas geográficas dispersas, distantes e em tempo real, a automação estará cada vez mais presente. Aliado a outras tecnologias disruptivas, como as impressoras 3D, essa oferta de informação irá mudar completamente a logística de peças de reposição para dispositivos e equipamentos que fazem a automação no meio rural. Ao mesmo tempo, a não inclusão digital será uma barreira cada vez menor aos produtores, na medida em que assistentes virtuais, que compreendem e processam linguagem natural, se tornam cada vez mais comuns.
O termo Smart Livestock se refere, portanto, a esta forma ubíqua de oferecer informação, produtos e serviços para todos os elos da cadeia da pecuária fazendo uso intensivo do aparato tecnológico da era da transformação digital. Um os os princípios básicos deste conceito é a experiência do usuário como o cerne da transformação digital. Por exemplo, um estudo da Gartner (O’Neill e Geschickter, 2016) prevê que em 2019, em pelo menos 25% dos domicílios dos países desenvolvidos, os assistentes em smartphones e outros dispositivos irão ser a principal interface para o usuário interagir com os serviços digitais. O relatório aponta que em um futuro não muito distante, os usuários não terão que lidar com vários aplicativos instalados em seus gadgets, em vez disso eles vão literalmente conversar com assistentes pessoais digitais, como a Siri da Apple, Alexa da Amazon ou Google Assistant.
A Embrapa Gado de Corte tem atuado para estar em consonância com estas novas tendências e aplicá-las, com protagonismo, no sistema produtivo pecuário brasileiro. Os desafios inerentes ao conceito da Smart Livestock, entretanto, vão muito além do desenvolvimento de novas soluções de TI aplicada. Trata-se também de adequar processos de negócio para possibilitar desenvolver estas soluções em parceria com a iniciativa privada e transferí-las com a agilidade e a eficiência do mercado de vanguarda tecnológica.
A história tem mostrado que cada vez que uma nova tecnologia disruptiva aparece, ela desperta uma série de medos decorrentes do desconhecido. Em pouco tempo, porém, as pessoas percebem as inúmeras vantagens e as preocupações iniciais, que haviam sido a base de debates acalorados, são rapidamente esquecidas. Discussões sobre novos modelos de negócio na era da transformação digital é uma destas situações.
A chegada da internet no mundo literário, por exemplo, não se tratou somente da digitalização de livros. Seu impacto foi muito além disso. A internet teve um efeito sobre todo o processo de publicação, desde a produção até a distribuição, marketing, promoção, gerenciamento de direitos autorais, etc. Os métodos tradicionais de criação, acesso e uso sofreram uma mudança histórica, apontando uma reorganização do setor cultural como um todo. Diante dessas novas maneiras de criar, acessar e usar a cultura, os profissionais da indústria literária precisaram refletir sobre que tipo de modelo de negócios implementar para enfrentar tais desafios. Empresas inovadoras e outros tipos de organização como startups, spinoffs, aceleradoras e incubadoras, reinventam seus modelos periodicamente na busca constante de adaptação a estas mudanças. O Kindle, por exemplo, revolucionou a maneira de consumir livros de muitas pessoas e, mais recentemente, o serviço “Kindle Unlimited” está mudando a forma como estas pessoas adquirem seus livros.
Na era da transformação digital, uma série de modelos de negócio inovadores já se consolidaram como viáveis (micropagamento de conteúdo fragmentado, pay-per-use, streaming, subscription, membership, freemium/premium, propaganda embutida, acesso aberto, P2P, MOOCs, etc), enquanto outros, mais recentes, ainda estão sendo experimentados e racionalizados (pay-what-you-want - PWYW, bundling, crowdfunding, gamification, B2C model, self-publishing, library e-lending, etc). Observa-se que a economia digital caracteriza-se pela necessidade de procurar novos modelos de negócios e combiná-los para alcançar melhor os objetivos pretendidos. Baseia-se, portanto, nesta fusão, com a ausência de um único modelo fixo, típico da natureza fluida da internet. É a base sobre a qual as relações de negócios, através de plataformas de comércio eletrônico, pode ser construída. Por esta razão, é importante permanecer aberto às possibilidades que os modelos combinados oferecem, e não vê-los como os modelos inflexíveis que são freqüentemente associados com o mundo analógico ou físico (Rojas, 2015). Assim como ocorreu com o mercado literário, todos os nichos de negócio estão fadados a se reinventarem perante a era da transformação digital. O conceito de Smart Livestock antecipa estas transformações para o sistema produtivo da pecuária, propondo diretrizes, premissas, modelos e processos que proveem um arcabouço para o desenvolvimento e transferência de soluções tecnológicas de TI aplicada da Embrapa para o seu público em consonância com esta nova era.
Referências Bibliográficas
Cáceres, E. N.; Pistore, H.; Turine, M. A. S.; Pires, P. P.; Soares, C. O.; Carromeu, C. (2011). Computational precision livestock position paper. In: II Workshop of the Brazilian Institute for Web Science Research. Rio de Janeiro.
ABIEC (2016). Perfil da Pecuária no Brasil: Relatório Anual 2016. Website: http://www.assessoriaagropecuaria.com.br/anexo/88, Acesso em: 2 de agosto 2017.
Ferraz, J. B. S.; Felício, P. E. D. (2010). Production Systems - An Example from Brazil. Meat Science, 84 (2): 238–243. O’Neill, M.; Geschickter, C. (2016). The Connected Home Is Transforming Into a Programmable Platform. Relatório Técnico. Gartner.
Rojas, M. J.; Yuste, E.; Vázquez, J. A.; Celaya, J. (2015). New Business Models in the Digital Age. Relatório Técnico.